Álcool, Racismo e Reparação: Reflexões para o Dia Internacional de Luta pela Eliminação da Discriminação Racial
- Natana Magalhães
- 21 de mar.
- 5 min de leitura

O Dia Internacional de Luta pela Eliminação da Discriminação Racial foi instituído pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1966, marcando a resistência histórica contra o racismo. A data de 21 de março rememora o Massacre de Sharpeville, ocorrido em 1960, na África do Sul, quando a polícia do regime do apartheid assassinou 69 manifestantes e feriu outros 186 durante um protesto pacífico contra a Lei do Passe, que restringia a circulação da população negra.
Embora o Brasil não tenha passado por um regime de apartheid formal, sua estrutura social e econômica origina-se no período colonial e carrega marcas desse período, que ainda produzem iniquidades raciais e infringem direitos humanos. Políticas de reparação têm sido, nesse sentido, um instrumento histórico protagonizado pelo movimento negro visando o “princípio da isonomia social do negro”, como formula o PROJETO DE LEI N.º 1.332, DE 1983(1), apresentado por Abdias do Nascimento, que exerceu mandatos como deputado federal e senador entre as décadas de 80 e 90 e foi um importante artista plástico, militante, escritor, poeta, dramaturgo e professor universitário(2).
As políticas de reparação não se restringem ao acesso a bens materiais e recursos historicamente negados sob a lógica da branquitude; ao contrário, exigem a desconstrução da branquitude como posição simbólica, política e material; um espaço de concentração de poder, como aponta a cientista social e mestra em Antropologia Tássia Mendonça, em entrevista para a Revista Afirmativa(3). A intelectual afirma que tais reivindicações por reparações estão intrinsecamente relacionadas à luta por liberdade e contra o legado produzido pelo tráfico de pessoas negras escravizadas.
O sistema escravista se sustentou por meio de estruturas políticas, econômicas e jurídicas que legitimaram tanto a mercantilização das pessoas negras quanto a supressão de formas de existência e culturas ancestrais. Os efeitos desse processo permanecem até os dias atuais, manifestando-se em diversos âmbitos como em desigualdades socioeconômicas, na persistência da violência direcionada a essas pessoas e piores indicadores de saúde desta população, que incluem os efeitos do consumo prejudicial de álcool por mulheres negras que veremos mais adiante.
A esse respeito, mesmo que parte da população branca não reconheça seu lugar social, constituído historicamente, e como este atua simultaneamente na forma como acessa e mantém privilégios, existe uma realidade. A negação das discrepâncias sociais e das classes que o racismo produz e organiza é uma poderosa ferramenta colonial, além de recurso invariavelmente utilizado por grupos hegemônicos. Esses grupos insistem em afirmar que seus privilégios são resultados de esforços, quando, na verdade, derivam-se do pacto de autopreservação. Conceituado pela psicóloga e doutora em Psicologia Cida Bento como “pacto narcísico da branquitude”, tal mecanismo opera, de forma consciente ou não, por meio das instituições e dos sujeitos brancos. Ele sustenta a exclusão sistemática e a manutenção de privilégios, assegurando a centralidade da branquitude e a marginalização de pessoas não brancas.
Os efeitos dessa dinâmica se manifestam na ocupação desigual dos espaços de poder, na negação do racismo e na reprodução de hierarquias que perpetuam desigualdades, tais como as que veremos nas próximas linhas.
A Pesquisa Nacional de Violência contra a Mulher (2023/2024), realizada pelo Observatório da Mulher contra a Violência em parceria com o Instituto de Pesquisa DataSenado, indicou que a ausência de ensino formal impacta a renda e perpetua desigualdades(4). Entre as mulheres negras, 66% sobrevivem com até dois salários-mínimos, mesmo com metade delas inserida no mercado de trabalho. A condição financeira precária é um dos fatores que aumenta a vulnerabilidade à violência de gênero, evidenciando que a violência contra essas mulheres deve ser compreendida com a complexidade exigida pela simultaneidade de opressões que se reforçam mutuamente na experiência de vida como o racismo, o machismo, a pobreza, a LBTQIAPN+fobia e o capacitismo, por exemplo.
Para citarmos como o racismo reflete no consumo prejudicial de álcool, dados de 2022, publicados pela Agência Pública, demonstram que a taxa de mortes atribuíveis ao álcool entre pessoas negras foi de 10,4 a cada 100 mil habitantes, enquanto entre pessoas brancas esse número foi de 7,9, uma diferença de cerca de 30%.
Entre as mulheres, a desigualdade é ainda mais expressiva: a taxa de óbitos relacionados ao álcool entre mulheres pretas e pardas foi de 2,2% e 3,2%, respectivamente, enquanto entre mulheres brancas, esse número ficou em 1,4%. Um dado alarmante é que 72% das mortes por transtornos mentais e comportamentais ligados ao álcool ocorrem entre mulheres negras(5). A desigualdade racial histórica no acesso a tratamentos e políticas públicas de saúde agrava essa realidade, tornando urgente o reconhecimento dessa vulnerabilidade específica.
Para transformar a difícil realidade brevemente apresentada, precisamos considerar uma leitura mais complexa e interessada em fatores ainda pouco discutidos pela literatura. Neste texto, parte-se do pressuposto de que, para pensar o consumo prejudicial de álcool pela população negra, deve-se dimensionar quem mais se prejudica e quem mais lucra nessa dinâmica. Entende-se a importância de perceber os efeitos do consumo prejudicial, mas também as razões que o originam. Muito se fala sobre quem consome de forma abusiva. Mas e quem produz de forma abusiva?
No Brasil, a indústria de bebidas alcoólicas é branca, masculina e concentrada no Sudeste do país, o que não é uma obra do acaso. Essa lógica se reflete também nas relações de trabalho associadas ao setor, como evidenciado pela recente responsabilização da Ambev e da administração municipal de Salvador por auditores fiscais do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) por submeter 303 vendedores ambulantes a condições análogas à escravidão durante o Carnaval.(6)
Diante das desigualdades e exploração, o consumo prejudicial de álcool por mulheres negras não pode ser reduzido a uma questão individual. Nesse contexto, se você conhece uma mulher negra que enfrenta dificuldades com o consumo de bebidas alcoólicas, convide-a para conhecer o trabalho da AF ou um CAPSad com ajuda especializada. Se muitas mulheres negras enfrentam o consumo problemático de álcool, é porque vivem em um sistema que, historicamente, as impulsiona para tal. Por isso, é fundamental oferecer redes de apoio que reconheçam os impactos do racismo na trajetória dessas mulheres e construam estratégias compartilhadas para a mudança. Mulheres negras são, acima de tudo, pessoas que merecem acolhimento, respeito e oportunidades reais.
Para além das políticas públicas, a luta contra a discriminação racial não deve ser travada apenas pelo grupo mais afetado. É um exercício de ética e humanidade que toda a sociedade se comprometa ativamente com essa causa, sobretudo indivíduos brancos, que precisam desconstruir práticas e pensamentos que sustentam desigualdades. Esse processo exige coragem para enfrentar o desconforto, reconhecer os próprios privilégios e reeducar olhares, falas e escutas. Envolve refletir sobre atitudes cotidianas, engajar-se na convivência e diálogo com as diferenças, e trabalhar ativamente para desmantelar estruturas de discriminação.
Práticas de reparação acontecem quando há o reconhecimento de que, ao longo da história, perdeu-se muito ao negar a dignidade, os saberes, as culturas e os valores civilizatórios dos povos africanos e afro-brasileiros. É tempo da sociedade brasileira reconstruir essa história, não apenas com palavras, mas com ações concretas. Fontes: 1 http://www.abdias.com.br/atuacao_parlamentar/deputado_lei_texto.htm#compensatoria
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